Há momentos destes na vida, em que somos compelidos a escolher entre estar aqui ou estar além, sendo que estar aqui é importante, mas estar ali não parece menos importante; sobretudo, quando as escolhas têm consequências: mas não é verdade que todas as escolhas exigentes, interessantes, têm consequências? Não é verdade que, fiquemos ou partamos, haverá sempre que dar explicações, justificarmo-nos perante os descontentes, os que não nos perdoam e não conseguem compreender o que quer que tenhamos preferido?
O clube de cinema teve o grato e raro prazer de receber, esta quarta-feira 27, Ricardo Araújo Pereira.
Para muitas pessoas, estar no auditório fruindo a sua presença implicou uma escolha.
Havia quem devesse ir estudar para um teste; ou quem tivesse um explicador à espera; ou reuniões marcadas para outro sítio à mesma hora.
Pela minha parte, evidentemente, não me atreveria a criticar nenhuma escolha. Admito que todas eram justificadas, razoáveis, compreensíveis.
Convém lembrar, porém, que Ricardo Araújo Pereira tinha muito para oferecer. Aliás, ofereceu-se todo: o seu tempo, a sua disponibilidade, o seu humor, o seu saber, a sua prodigiosa capacidade de comunicação. Mais: a sua intimidade, sob a forma confidente, confessional, de quem se encontrava entre amigos. («Posso dizer isto à vontade? Não me estão a gravar, pois não? Então cá vai...»); se chegou com alguma reserva, talvez hirto e demasiado formal, cedo começou a relaxar, à medida que a reacção de um público completamente rendido, numa escuta absorvente e num riso contínuo, criavam um clima de euforia e de bem-estar.
Para quem tivesse, de Ricardo Araújo, a imagem de um mero comediante, o engano tornou-se flagrante. É um homem de uma cultura requintada e inesgotável. Despretensiosa mas inesgotável. Despretensiosa porque, na sua boca, nada soa grave nem denso, nem artificial. As ideias fluem com uma simplicidade que nos toca. Os conhecimentos são expostos naturalmente. Mas inesgotável, porque Ricardo fala com todo o à-vontade sobre filosofia e filósofos, sobre literatura e escritores, sobre política - ou sobre futebol. A propósito de qualquer assunto, teoriza inteligentemente, narra histórias pessoais e episódios da História, provocando e mantendo a hilaridade, como o gato que brinca com as baratas, salvo seja!
Não andarei arredado da verdade se vos disser que, para aqueles jovens, Ricardo é - e foi uma vez mais - um exemplo positivo, capaz de lhes mostrar como é que um tipo alto, bonito, com imensa piada, e que eles admiram, se revela uma pessoa de leituras, que procura o saber e o prazer das palavras. Não andarei arredado da verdade se vos disser que esta sessão em particular teve a dignidade de uma lição que os rapazes e as raparigas presentes nunca esquecerão. E, por fim, não andarei arredado da verdade se acrescentar, sem ironia nem espírito de provocação, que os professores que ali estiveram puderam testemunhar o mais autêntico exercício do ensinar; de como se cativa e incentiva; de como se cria nos outros o desejo de escutar e de saber.
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