quarta-feira, 4 de novembro de 2009

ELEPHANT E OS CEGOS

Acabo de entrar em casa, as mãos mal conseguindo abraçar a pasta, a filha ainda adoentada, o filho amparando-se, também doente, ao meu ombro, um saco plástico com a comida que sobrou do almoço deles.
Pormenores hiper-realistas à parte, o que interessa contar é que vou ter de a aconchegar na cama, porque adormeceu, e de o ajudar a ele a pôr-se confortável, mas sem esconder que estou ansioso por me sentar ao computador: apetece-me, e imediatamente, porque ainda trago tudo muito vivo no espírito, principiar a escrever um texto - este texto - acerca da sessão de cinema de onde venho.

Gostei de conhecer Carlos Vaz Marques, o convidado: cala-me sempre fundo encontrar mais uma dessas pessoas admiráveis que, no interior de uma agenda preenchidíssima, encontram sempre tempo e disposição para aceitar um convite simples, de um clube escolar.

E valeu a pena ter visto o filme de Gus van Sant, Elephant, que não conhecia e me surpreendeu pelo tipo de abordagem de um assassínio em massa praticado por dois jovens.

O mais brutal dos acontecimentos, e o mais emotivo, é visto, paradoxalmente, através de um olhar despido de emoção, como se fosse um robot ou um extra-terrestre a observar as situações, curiosa mas friamente.

As cenas mais corriqueiras são demoradamente perscrutadas por esse olhar, o qual não criaafinidade com nada ou ninguém: nenhuma empatia permite que nos identifiquemos com as personagens. Ou, sequer, que cheguemos a odiar os maus. E se essa ausência de filtro nos perturba, ela vem instalar uma certa banalidade (mas, mais ainda do que essa banalidade tantas vezes referida, estabelece um vazio do afecto, de afectos).

Tudo parece gratuito - e, afinal, nada é gratuito; há sentidos que nos escapam, enigmáticos ou, como lembrava Carlos V. Marques, intuídos em alguns sinais, como pontas soltas, indícios que não se chegam a completar, meras possibilidades que o realizador não fecha nem esgota.

O debate que se seguiu, vivíssimo, foi dos mais interessantes a que o clube já assistiu: diria que Sicko e Elephant foram, este ano lectivo, desse ponto de vista, dos filmes mais provocadores e estimulantes.

Também no debate nada foi gratuito, e tudo serviu para o tornar um momento riquíssimo de conversa, partilha e discussão: que o Eça não tivesse apreciado o filme e o considerasse pretensioso, que a Luísa, amiga de há muito do Carlos, conseguisse fazer a ginástica que fez para o reencontrar, que Elisa, ex-professora do nosso convidado, tivesse saído mais cedo do Pedagógico para o outro grande reencontro da tarde, que um grupo não suportasse mais tempo o filme e abandonasse a sala a meio, que os gostos fossem diferentes, que as perspectivas fossem múltiplas - à imagem do próprio elefante que seria diferentemente percepcionado e descrito por cada um dos cegos à volta dele.

Nós fomos os cegos diante de Elephant. E a verdade é que, de ângulos diferentes, segundo diferentes gostos, compusemos um possível puzzle.

Nós fomos os cegos, e vimos muito bem.

Obrigado, Carlos, e até breve.

3 comentários:

  1. Foi um filme extraordinariamente forte e marcante. Já o tinha visto, e gostei ainda mais de o rever. Gostei de conhecer o Carlos :)

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  2. Concordo totalmente contigo José. Saímos desta sessão com a nítida sensação que aquela conversa foi importante. Permitiu confrontar visões diferentes sobre o filme e aprofundar (com essas novas participações) aspectos que não demos tanta atenção. Quando esta partilha funciona desta forma a opinião do grupo enriquece-nos e percebemos as vantagens em continuar a levar por diante este projecto do Clube de Cinema.
    Já no autocarro de regresso a casa para Carnaxide, e ainda no rescaldo da sessão, alguém do CC perguntava: e agora quem vai ser o próximo convidado?
    E este parece ser o melhor elogio a esta iniciativa que tanto nos apaixona.
    A propósito, já repararam que o nº de “cinéfilos” do blogue está a aumentar?

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  3. Apesar de ser uma incondicional do Clube de Cinema, pouco tenho por lá passado, sobretudo porque as quartas-feiras são aquele dia fatídico de C. Pedagógicos e afins. Apesar disso, não posso deixar de dizer-vos - a ti, Francisco, a ti, Zé António, e aos meus queridos alunos do Clube - que o Anfiteatro, nas tardes de quarta-feira, é um daqueles lugares de fruição estética, reflexão partilhada e exercício de liberdade, cuja existência justifica o gosto de ser daqui.
    Obrigada por isso e, já agora, obrigadíssima por me terem propiciado o encontro com o meu ex-aluno Carlos Vaz Marques. Talvez imaginem o gozo que me deu reencontrá-lo e debater com ele um filme que é também sobre a Escola. Foi um debate fantástico!

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