No passado fim-de-semana vi dois filmes completamente diferentes, mas ambos brilhantes. Na sexta, fui ver o novo filme de João Pedro Rodrigues, MORRER COMO UM HOMEM, que estreou em festivais tão diversos como Cannes ou o Queer Lisboa 09, e que se afirma como um dos mais inteligentes realizadores portugueses, cujas metragens têm sido aclamadas em toda a europa. No sábado, tive a sorte de arranjar convites para a sessão de encerramento do doclisboa, onde assisti à ante-estreia do filme CAPITALISM: A LOVE STORY, de Michael Moore, que me parece dispensar apresentação. Para os mais esquecidos, é o polémico realizador do filme Sicko, apresentado pelo André Jorge há duas semanas no clube de cinema.
Sobre o MORRER COMO UM HOMEM:
Tonia (nome artístico de António) é um travesti que fez um implante mamário e que é um dos favoritos das noites de Lisboa. Os seus tempos de glória já passaram, e não quer admitir que mais tarde ou mais cedo se terá de reformar.
Vive com um homem muito mais novo, um rapaz quase, a quem impede de continuar nas drogas. Tem um filho, zé maria, homossexual como o pai, mas que se reprime a si mesmo. Por causa disso, rejeita o pai, mas é igual a ele. Na sequência inicial do filme, zé maria faz treinos nocturnos no exército. Ele camufla-se para o treino, mas ao espectador parecen-nos antes que ele se pinta, como uma mulher, as folhas na cabeça parecem os chapéus exóticos da Carmen Miranda. Então, ele e um companheiro despistam os outros soldados e fazem amor nos bosques. Aproximam-se de uma casa onde vêm dois travestis a cantar. Após um comentário infeliz sobre o pai de zé maria, este último mata o namorado com um tiro de metralhadora.
Começa o genérico, que é entrecortado com cenas de um médico a explicar detalhadamente uma operação de mudança de sexo. Após exemplificar, diz: "Como vê, nada se perde, tudo se transforma!" Tonia quer mudar de sexo, mas as suas crenças religiosas e o seu medo vão adiando a decisão. O seu namorado diz: "vais ser sempre assim?, nem uma coisa nem outra?"
O filho assassino refugia-se em sua casa. O namorado desaparece, rouba-lhe coisas e compra heroína. Zanga-se com a melhor amiga por causa de uma madeixa de cabelo, que afinal havia sido roubada pela sua cadela, Agustina. Discute com o dono do bar travesti onde dança e com a outra dançarina, que quer o seu lugar. Várias vezes, as personagens vão parar ao cemitério, e percebemos que estão ligadas à morte e que terão um destino funesto.
A sua vida caótica alcança apenas um momento de paz, quando se perde com o namorado nos bosques e vão parar à casa dos dois travestis do início. Aí começa um episódio onírico, o único momento de absoluta tranquilidade e paz. Quando Tonia regressa a Lisboa, descobre que o seu corpo rejeitou a silicone dos implantes mamários e que tem o corpo todo infectado. É operada e retiram-lhe o peito. Pressentindo a morte, decide morrer como um homem. É enterrado vestido como um homem, e é o seu nome masculino que aparece no túmulo. O seu namorado, enquanto Tonia estava no hospital, voltara para as drogas, e acabara por morrer. São enterrados juntos. A câmara filma Tonia a cantar. É uma história trágica, bela, com momentos terrivelmente engraçados. Citando agora alguns críticos: "10 minutos deste filme têm mais ideias e vontade de correr riscos do que em 90% do cinema actual". É verdade. E o resultado é espantoso. João Pedro Rodrigues é uma aposta no cinema português, que todos deveríamos tomar.
Se os espanhóis fizeram isso com o Almodóvar, um cineasta bastante inferior, porque não conseguimos nós?
EM CANNES
Sobre CAPITALISM A LOVE STORY:
É provavelmente o melhor filme de Michael Moore, embora seja difícil escolher dentre as suas obras. Sicko era o meu preferido dos anteriores, por lidar de forma exemplar com um tema à partida difícil e aborrecido. Mas este novo filme supera as expectativas, pela forma como Moore nos consegue explicar os progressos do capitalismo no EUA, que acaba por derrotar a Democracia. Um fulano afirma no filme: "O Capitalismo é tudo. Sinceramente, nem sequer concordo com a Democracia. Há pasíses democráticos que são pobres. Mas o Capitalismo é o regime perfeito." Só mesmo um americano para dizer isto! Moore viaja pelos EUA e vai até Wall Street, onde tenta prender os banqueiros. Fala sobre a crise, sobre a esperança que Obama despertou em todos (apesar de mostrar como os banqueiros, farmacêuticos e outros financiaram a sua campanha, tentando suborná-lo - vamos lá ver se conseguiram ou não...) e volta a usar os países da europa como modelo.
Tenta expor o melhor possível as consequências do capitalismo: famílias enganadas pelos bancos e que são expulsas das suas casas; empresas que fazem seguros de vida aos seus empregados (quando muitas vezes estes nêm os têm) e quando eles morrem, lucram milhões com isso; pilotos de aviões que recebem menos do que empregados do mcdonald's; bancos que controlam o ministério das finanças; trabalhadores que são despedidos quando foram os patrões que investiram mal o dinheiro... Conta-nos como foi usado o dinheiro que o congresso entregou aos bancos durante a crise: em aviões particulares e outros luxos. Nem um centavo para os desempregados. Mas é com esperança que nos mostra como o espírito tacanho dos americanos se vem modificando, e entrevista alguns grevistas que tomaram uma fábrica e se fecharam lá durante dias, para que não fossem despedidos. Fala-nos de uma empresa única em que todos são patrões, todos recebem o mesmo, todos têm uma palavra a dizer sobre os investimentos. "Quase que parece comunismo!" Mas os lucros são divididos por todos, todos prosperam e a empresa, ao contrário de milhares em todo o mundo e nos EUA, não faliu. Por outro lado, lucrou imenso.
E, claro, Michael Moore brinca com a situação, ou às vezes, comove-nos com as misérias dos outros. E não podemos esquecer de algo que é mencionado quase no final. Antes de morrer, em 1945, o então presidente Franklin Roosevelt tinha intenções de proclamar uma declaração dos direitos humanos em que, entre muitas outras coisas, se nacionalizaria o sistema de saúde e em que o estado teria maior controle da economia. Então, porque é que isso não chegou a concretizar-se? A mensagem de Michael Moore é de que ainda vamos a tempo. E dá o exemplo ao cercar um banco com uma fita em que está escrito: Crime Scene!
Em resumo, foi um fim-de-semana cinéfilo muito bem-passado!
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