Hoje, decidi escrever sobre um livro; e, obviamente - porque não, não me esqueci de que estou num blogue de cinema -, acerca das implicações (ou de algumas das suas implicações) cinematográficas.
O livro em causa é O Coração das Trevas (The Hearth of Darkness): ando a relê-lo, em busca de uma obra maior da literatura que seja, ao mesmo tempo, uma obra menor em extensão, de forma a que a usemos, para o ano, como objecto de conversa numa das tertúlias literárias da Biblioteca.
O seu autor é Joseph Conrad, isto é, Jósef Teodor Konrad Korzenlowski, aristocrata polaco que se tornaria um reconhecido mestre do inglês, idioma em que escreveu os seus celebrados romances, apesar de o ter aprendido razoavelmente tarde. (Aos vinte e três anos. Acho isto notável. Não acham também?).
Da sua autoria, toca-me particularmente Lord Jim, de que falamos nas aulas de filosofia a propósito de como um acto, cuja génese nem mesmo aquele que o pratica é capaz de explicar muito bem, pode, contudo, condicionar completamente a sua vida. E, falando de Lord Jim, é já possível começar a remeter para o cinema. Estou certo de que houve vários filmes inspirados nessa obra: recordo-me de um, com Peter O' Toole (actor que considero, aliás, muito mau e me parece que vinha piorando com a idade...) e james Mason.
Mas regressemos ao coração das trevas. Trata-se de uma obra soberba. Se ultrapassarmos rapidamente o início - contaminado, quanto a mim, por um recurso estilístico que me desagrada pelo seu irrealismo, se não anti-realismo: o que consiste em mostrar-nos que toda a história está sendo contada, de viva voz, por alguém, numa roda de amigos... -, apercebemo-nos de que nos encontramos em face de uma narrativa, profundamente cinematográfica, sobre o modo como o mal, «the darkness», que nada mais é do que a natureza mais profunda e brutal de todos nós, uma vez emergindo, no contexto mais propício, nos devora e transforma completamente, anulando todos os resquícios de cultura e civilidade sob que se ocultara.
Há duas personagens centrais. Para já, Marlow, que vai rememorando como subira o rio Zaire, guiado pelos relatos, de que lhe chegavam ecos, acerca de um misterioso, sinistro e fascinante Kurtz; e, depois, o próprio Kurtz, que a vida numa África selvagem transformara num ser cruel, uma espécie de Senhor da violência, que os indígenas adoravam como a um deus vivo.
Mas a questão que subsiste é esta: serão Marlow e Kurtz assim tão diferentes? O homem civilizado e aquele que mergulhou no coração das trevas estarão assim tão radical e definitivamente separados um do outro? (É, de resto, a mesma temática de uma outra obra maior, igualmente adaptada ao cinema, O Senhor das Moscas).
E, para não nos afastarmos do cinema: Orson Welles, interessadíssimo neste tema - que nunca chegou a filmar por falta de meios, problema com que, pelo que tenho descoberto com o Eça, se debateu constantemente - lia estas duas personagens como sendo as duas faces de uma mesma moeda. Decidira, inclusivamente, na sua percepção genial, que seria ele próprio a representar ambas as personagens, Marlow e Kurtz. (Haverá depois, em 1958, um tenebroso Kurtz composto por Boris Karloff, num telefilme da CBS que nunca vi, mas de que tive informação na nota introdutória, da autoria de Aníbal Fernandes, à tradução portuguesa do romance). É claro que, mesmo a quem não tivesse já conhecimento de tudo isto, nada do que aqui escrevi terá soado como inteiramente desconhecido. A razão? Deixem-me relembrá-la em duas palavras: transpondo-os para um contexto espacio-temporal diferente, neste caso a guerra do Vietname, estas personagens, este confronto, este fascínio pela darkness deificada e, mais do que tudo isto, o próprio nome «Kurtz» são reencontráveis em Apocalypse Now, em que Francis Ford Copolla nos apresenta a sua leitura do coração das trevas, recorrendo a um inesquecível Marlon Brando.
CINEMA: O PODER DO CÃO
Há 2 anos
Há algo nesse autor, Joseph Conrad, que me soa familiar. À algum tempo ouvi, num programa do Biography channel que David Lean esteve em certo ponto da sua carreira interessado em adaptar para o cinema um livro intitulado "Nostromo", de Joseph Conrad. Será esse autor o mesmo que descreves aqui?
ResponderEliminarÁs vezes esqueço-me que a internet propicia um acesso quase sem limites a todo o tipo de informação. Já confirmei que se trata do mesmo autor. Eu sabia que ele era o autor dessa obra que referi, Nostromo, a qual não conheço muito bem, mas nunca o associei ao Heart of Darkness, que conheço quase exclusivamente pela adaptação cinematográfica do Francis F. Coppola.
ResponderEliminarAinda assim nunca li o livro. Confesso alguma curiosidade em saber se Coppola terá tomado alguma liberdade artistica na adaptação, além da transposição espacio-temporal da acção que referes.
O filme referido, Lord Jim, é bastante interessante. É do Richard Brooks, um realizador que eu aprecio. Infelizmente, não li nada do Conrad mas adorei o Deus das Moscas e a temática em si agrada-me bastante, por isso é provável que leia o Heart of Darkness. Quanto ao Peter O'Toole, não desgosto dele embora não ache que seja por aí além. Faz-me pena é que já tenha sido nomeado umas seis ou sete vezes e nunca tenha vencido - até o terrível scorcese já ganhou! E o Boris karloff, não acham ser extraordinário? (especialmente no frankenstein)
ResponderEliminarahhh... esqueci-me de dizer que tenho o Lord Jim e os filmes do Karloff, se alguém quiser. (em relação ao Apocalypse Now, nunca vi, talvez porque ninguém na minha família gosta do filme, mas tenho alguma curiosidade e se algum dos cinéfilos tiver, agradecia que me emprestasse)
ResponderEliminarP.S - Viva o Orson Welles!
ResponderEliminarBem, pelos vistos a minha resposta já vem tarde para fazer os esclarecimentos pedidos. Já percebeste, JC, que Nostromo é do mesmíssimo Conrad. Há mais um passado recentemente para o cinema - «recentemente» é relativo -, que é Agente Secreto. Ao Eça, que julgo que domina o inglês, aconselho, então, a que experimente ler o Conrad em inglês. Não digo isto por pretensiosismo, para que se possa avaliar o extraordinário e feliz inglês em que escreve alguém que o aprendeu tão tarde, mas que dizia que lhe parecia que sempre tivera o inglês em si, como se aprendê-lo tivesse sido, de facto, simplesmente recordá-lo. Quanto às liberdades tomadas por Copolla, bem, elas são praticamente ilimitadas. Basta dizer que Marlow, em Conrad, se deixa entranhar completamente pela «darkness», sendo salva dela pelo exterior - isto é, por quem o vai buscar -, enquanto que o «Marlow» de Copolla - que não se chama assim, é o capitão -, no filme, acaba matando Kurtz.
ResponderEliminarEste meu anterior comentário ficou pejado de erros. É terrível não se poder corrigir. Apagar e rescrever? Desculpem lá, não me apetece. A ideia ficou clara não foi? Então, vá!
ResponderEliminarObrigado pela sugestão. De facto, li há pouco tempo A Connecticut Yankee in King Arthur's Court, do Mark Twain, em inglês, e é sempre impressionante como um livro fica distorcido por qualquer tradução - mesmo a melhor. O Corvo, traduzido pelo Pessoa, sempre foi ilegível. De qualquer forma, isto aplica-se também ao cinema e é por isso que ultimamente tenho visto os filmes em inglês. E percebe-se melhor! Por exemplo, nos filmes dos Irmãos Marx, há momentos hilariantes em que o Harpo (que é mudo) descobre sempre um segredo e tem que revelar ao Chico. Para isso ele utiliza objectos e mímica. Num dos filmes, ele queria dizer que o seu amigo tinha sido despedido e então acendeu um isqueiro, originando fogo - que em inglês é fire. Isso levou a despedido - fired! Traduzido para o português não tinha qualquer piada. E isto acontece muito nas comédias e nas "piadas linguísticas", mas também em todo o género de filmes.
ResponderEliminar