Há alguns anos, teve certo impacto uma série televisiva que, pelas informações que a antecipavam, calculei que viria a tratar-se de uma história assaz misteriosa, acerca de uma jovem que alguém assassinara. O contexto era o de uma típica povoação dos Estados Unidos, Twin Peaks e, tanto quanto me lembro, havia tudo para atrair a atenção do leitor compulsivo de policiais, que eu sempre fui: uma terra aparentemente pacata, a vítima de um crime (Laura Palmer) e, com a descoberta desse crime, a aterradora descoberta de que, sob a dita pacatez provinciana, se ocultavam grandes segredos, ah, segredos perversos, com raízes terríveis e temíveis, profundas e emaranhadas.
Nessa série, conheci vários artistas que nunca mais perdi de vista. Em primeiro lugar, o jovem actor Kyle MacLachlan, que fazia o papel de Agent Cooper, detective encarregado de descobrir indícios que o levassem ao criminoso/[a]/[os]; mas, em segundo lugar, e à medida que a série principiava por me desiludir (porque se revelava uma outra coisa, muito diferente da que eu ansiava...) e, depois, lentamente, a reconquistar-me, de um modo muito inesperado, pelo tom surrealista do todo, pela estranheza daquelas personagens e daquele espaço, pela constante, perturbadora e hipnótica confusão entre o sonho e a realidade, acabou por me fazer prestar atenção ao realizador. Era David Lynch, filmando a partir de um livro, O Diário Secreto de Laura Palmer, da autoria de sua própria filha, Jennifer Lynch.
O mesmo Kyle MacLachlan fora, também, o actor que Lynch tinha escolhido para, juntamente com um extraordinário Dennis Hopper e uma magnífica Isabella Rosselinni (mas, se não o sabem já, averiguem-no: não se limitem, pelo amor de Deus, a acreditar nos adjectivos de ar tão exagerado que aqui emprego - «extraordinário», «magnífica»...) criar esse objecto de culto que é Blue Velvet. É, sem dúvida, um dos filmes que gostaria que víssemos numa das sessões do clube, para tentar explicar por que o considero uma obra rara e perfeita, onde o mínimo pormenor - na encenação, termo teatral que corresponderia, em cinema, ao pouco luso «mise-en-scene» -, na criação da tensão e do suspense, na exposição dramática dos sintomas do desequilíbrio e da perversão de certas personagens, na utilização da música, na cor, com aquele azul nocturno que associo sempre ao filme, e me persegue... - é um genial exercício de arte e um autêntico tratado de psicologia...
CINEMA: O PODER DO CÃO
Há 2 anos
Esta é uma daquelas situações em que apetece dizer "este comentário vem mesmo a calhar"! Isto porque recentemente tomei a decisão (que já vinha adiando há bastante tempo) de comprar esta série que tanto gosto. Todo o mistério que envolve a procura do autor desse crime hediondo com que a série arranca acaba mesmo por ser um artificio que o próprio Alfred Hitchcock usava nos seus filmes (ao que ele chamava red herring), uma forma de chamar a atenção do espectador num sentido, enquanto que a narrativa se desenvolve por outros caminhos. Ainda me lembro que numa revista lançada na semana em que a série estreou em Portugal tinha na capa o slogan chamativo "Quem matou Laura palmer?". Ai partilho o teu interesse nesse desenrolar de personagens bizarras que Lynch e Mark Frost nos vão apresentando. Alias, este ultimo renovar do meu interesse pela série levou-me inevitavelmente à filmografia do realizador, mas devo dizer que todo esse elemento surreal, quase como de um sonho, que povoa a série está muito mais enraizado nos filmes, tornando-os um pouco complexos de decifrar (ou absorver). Isto traz outra vez a tal questão de estética versus conteudo narrativo. Eu proprio gosto bastante do Dune ou do Blue Velvet que referes. Mas há alguns titulos para os quais ainda não consigo formar uma opinião concreta, como por exemplo o proprio filme que Lynch fez sobre a ultima semana que antecedeu a vida da personagem Laura palmer, da mesma serie, chamado "Twin Peaks: Fire walk with me".
ResponderEliminar..." a ultima semana que antecedeu a vida de Laura Palmer"? OK, o David Lynch filma bastante no plano do abstrato, mas não se deixem enganar pelo meu erro. O filme "Fire walk with me" não é sobre o periodo de gestação da personagem Laura Palmer, acho que isso seria demais, mesmo para o David Lynch. Eu queria ter escrito ..."a ultima semana que antecedeu a morte de Laura Palmer".
ResponderEliminarestá na hora de um post sobre o lynch, não acham? adorava saber a opinião dos camaradas cinéfilos sobre os últimos (e completamente chanfrados) filmes dele...
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