"Quem sonha de dia tem consciência de muitas coisas
que escapam a quem sonha só de noite"
Edgar Poe
Não.
Desta vez não há polémica.
Embora, por vezes, ela seja necessária.
Sinto-me até algo triste que os nossos "cinéfilos" (cujos nomes estão aqui ao lado colocados como "estátuas") participem tão pouco nestes debates. Podiam pelo menos fazer alguns comentários...
No entanto, como o Peter Falk afirmava no filme "As Asas do Desejo", eles (os nossos cinéfilos - e outros "anjos") observam-nos e isso é visível naquele contador de presenças do Blogue que nos últimos dias tem andado numa roda viva... e já estamos perto das 10.000 visualizações!
Apesar das divergências (e ainda bem que elas existem) relativamente a "Paris, Texas", o Clube de Cinema não se vai desmoronar e a minha amizade com o José mantém-se. Foi ela que nos permitiu sonhar com este projecto "Gostos Discutem-se" que teve, relembre-se, na primeira sessão, a presença de 6 pessoas: 3 alunos e 3 professores.
Ontem, na apresentação do filme "As Asas do Desejo", estiveram a assistir 14 pessoas. Um pouco menos que a média deste ano que ronda as 20 presenças. Testes intermédios, trabalhos para entregar, preparação das curtas-metragens para o Festival do dia 30, talvez sejam bons argumentos para as ausências...
Mas não sabem o que perderam!
Embora o filme não seja daqueles "cheios de acção" e de leitura fácil, os 14 resistentes mantiveram-se e a maioria permaneceu no final para o debate. E que debate... Quase todos foram dando a sua opinião, ouviu-se muito (que é tambem uma forma de participar) e ficámos todos com a sensação de que valeu a pena.
Por isso, para aqueles que não puderam ir, aqui vos deixo dois textos que ajudam a comprender o filme.
O primeiro escrito pela apresentadora - a Prof. Teresa Gomes.
O segundo é de Pedro Moreira, escrito em 2007, na Revista E-topia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Der Himmel über Berlin – Sob o céu de Berlim
Há acontecimentos que modificam a nossa vida e este filme foi um deles. Não de repente, mas ao longo do tempo que o fui degustando. Ganhou mais uma peculiaridade quando seguido do “Paris, Texas” do mesmo realizador. Wim Wenders, o contador de espaços.
O filme é passado em Berlim Ocidental (RFA) em 1987. A cidade está dividida pelo muro construído em 1961, pulsante cicatriz queloide que interrompeu lugares, caminhos, histórias, famílias. Expressão maior de como o poder político condiciona a vida e a felicidade humana. O filme é sobre esta cidade dilacerada. Mas não só. É a existência humana vista por alguém exterior a ela - os anjos. O “desejo” nasce da cobiça dos anjos que não têm acesso aos sentidos humanos, origem do prazer. É que a vida permanece.
Todos os sentimentos, pensamentos, gestos, feitos por vezes de forma automática e inconsciente, expressam essa vida: o café da manhã, o abraço dos amigos, o calor do sol na pele nos dias frios, a primeira chuva, um cigarro ao fim do dia, estudar, passear de mão dada; mesmo a inquietação, a desilusão e o amor são preciosos.
Foi esse olhar de criança, nascido dos sentidos, inquieto e deslumbrado, que eu recebi do filme.
Als das Kind Kind war…
Teresa Gomes
As Asas Do Desejo: Porque é preciso sonhar
António Damásio, no seu magnífico Erro de Descartes, coloca o desejo como inato ao ser humano, demonstrando cabalmente a forma como determinadas zonas do nosso cérebro controlam a capacidade de pensarmos no amanhã, nas nossas aspirações e projectos para lá do limiar do imediato, do hoje.
(…)Podemos assumir duas posições no que toca à origem do desejo: acreditar que é parte da nossa condição ou então considerar que a necessidade ou as circunstâncias sociais, económicas e políticas o despertam. Estes pontos podem ser ilustrados recorrendo a um filme de Wim Wenders, As Asas do Desejo. Não pretendo oferecer uma sinopse detalhada, na esperança de que os aspectos focados estimulem o visionamento do mesmo.
O filme, datado de 1987, tem como cenário a cidade de Berlim do final dos anos 80. O guião, inspirado na poesia de Rilke e escrito em colaboração com Peter Handke, acompanha o dia-a-dia da Berlim do final da década, de uma humanidade desiludida que vagueia cinzenta pelas cicatrizes do Pós-guerra. Esta situação é-nos relatada do ponto de vista de dois anjos – Cassiel e Damien – visíveis apenas por crianças e incapazes de qualquer contacto físico com o mundo humano. A sua visão é, significativamente, a preto e branco. Em contraponto, recorre ao longo do filme a narração em voz-off de um poema de Handke, Song Of Childhood. Esta canção da infância recorda o que depressa esquecemos, esse ponto comum a todo o ser humano, por mais diferente que a sua experiência de vida seja: a criança é o sonhador perfeito.
A criança é capaz dessa proeza de olhar um riacho como um rio, um rio como uma torrente e uma poça como um oceano. Encara o futuro como um território de possibilidade total, a sua construção do mundo não encontra terrenos demarcados pelas barragens da negação. Acima de tudo, é capaz de encarar o futuro em cada momento e de o moldar e construir de acordo com as suas expectativas e sonhos. Creio que recordar as proezas da nossa infância não constitui um exercício inútil de nostalgia mas, cada vez mais, uma proeza maior.
Esta capacidade primeira de sonhar, de encarar o futuro com optimismo, é o fruir primeiro do impulso utópico. “Imagination is more important than knowledge”, assim é citado Einstein por Federico Mayor em Attempting The Impossible. Não é a utopia o reflexo máximo da vontade humana de ir mais além? O conhecimento só pode conceber a chave para um futuro melhor quando alado pela imaginação, quando carregado pelas asas desse desejo. Na ausência dele, torna-se uma prisão, estagna o Homem na realidade cinzenta da Berlim de Wenders.
É particularmente comovente a imagem de um idoso que procura a Potsdamer Platz de tempos idos, recordando-a num cenário de ruína, ao lado do Muro. Este olhar para o passado nas ruínas do presente serve de metáfora para expressar a perda da oportunidade de reclamar o paraíso quando o homem perde a capacidade de sonhar e olhar para um futuro melhor.
Ao retratar o Homem nos dois extremos da sua existência – Infância e Velhice – o filme traça o arco dessa perda. O mundo da infância, presente através da recorrência do poema, denuncia a insuficiência e alienação do mundo adulto na sobreposição da narração às imagens. Desta forma, é identificado com o mundo dos Anjos, na medida em que ambos têm capacidade de sonhar: a Criança com o Futuro e os Anjos com a existência material.
Ao metaforizar a Infância num poema, sem concretizar através de uma personagem esta reflexão, Wenders iguala-a à neutralidade observadora dos Anjos. Assim, ambos olham o Homem com esperança e espanto. Recorrentemente, os dois anjos partilham os pensamentos que recolheram na sua observação, maravilhados com a beleza de momentos que passam totalmente despercebidos aos seus donos. A admiração que passa por eles é cândida e, de certa forma, infantil aos olhos do espectador.
Uma Humanidade sem sonho vive destituída e empobrecida: não há beleza ou felicidade. Vive desligada do pulsar que a anima, alienada do melhor que é capaz de produzir, sem conceder sentido à sua existência. Os Anjos, por sua vez, estão em contacto com a maravilha da poesia, da invocação da cor, do sabor, do sentimento. Não é ausente neles a resposta a essa invocação: surge o sonho, o desejo de as experimentar na sua plenitude.
Quando um dos anjos decide abdicar da sua condição, abraçando a mortalidade, fá-lo por crença na capacidade humana de sonhar. O mundo ganha então cor a seus olhos, ganha significado e esperança porque só na condição de morto é que faz sentido olhar-se com esperança para o futuro, mesmo que inatingível: “Sei agora o que nenhum anjo sabe”, diz o anjo caído no final do filme.
O desejo é então o que confere sentido à existência humana no filme de Wenders. Se a um mundo de fronteiras, de limitações sociais, políticas e económicas, respondemos com o mundo das fronteiras auto-impostas e da alienação, não somos mais do que uma versão a preto e branco da humanidade.
A resposta dada em Asas do Desejo à questão da origem do desejo passa pela afirmação de que, mais do que inato, este constitui o sentido mais nobre da existência humana. Diria que, ao sublinhar essa faceta, Wenders defende a necessidade de manter intacta a vontade de transcender os limites que todos conhecemos enquanto crianças. Nenhum Homem se esqueceu de como sonhar, mas a maioria dos Homens perdeu a crença na força e importância de o fazer.
Vivemos um momento historicamente tenso, não sem semelhança ao clima político que deu origem à obra de Wim Wenders aqui discutida: os choques culturais, as palavras “Guerra Nuclear” a insinuarem-se todos os dias na informação que nos chega através dos media. Obras como as Asas do Desejo tornam-se então vitais porque, ao devolverem respostas positivas ao Sonho e Desejo, devolvem esperança na possibilidade de um amanhã realmente melhor e ao alcance do Homem. Ou como diz o poema de Handke: “When the child was a child (…) it had, on every mountaintop, the longing for a greater mountain yet, and in every city, the longing for an even greater city, and that still is so (...)”.
Pedro Moreira
Revista E-topia - 2007
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Falou-se no debate que este filme tinha uma continuação.
ResponderEliminarO filme é "Tão Longe, Tão Perto" de 1993.
Para quem quiser ver existe uma versão completa do filme no youtube com legendas.
Eis o link:
http://www.youtube.com/watch?v=vsl5_SKxAMo&feature=relmfu