quinta-feira, 31 de março de 2011

FILM SOCIALISME (elogio a JLG)

















o último filme de jean-luc godard, oitenta anos, já, realizador mais influente e radical do movimento francês conhecido por nouvelle vague, que, por sua vez, originou muitas outras "novas vagas", no japão, estados unidos, inglaterra, alemanha, entre outros países, chama-se, simplesmente, film socialisme, filme socialismo, em português. não será um título de estranhar vindo de um cineasta que se afirma de esquerda do cabelo até às unhas dos pés, basta lembrar week end ou la chinoise que previram o maio de sessenta e oito. film socialisme é, em poucas palavras, um ensaio cinematográfico sobre a europa e o socialismo europeu, ou melhor, a ausência do socialismo europeu. tal como o notre musique, o filme é um tríptico, cujas partes têm muito pouca ligação entre si, se a têm de todo.
o primeiro segmento (muito à um filme falado, de manoel de oliveira): as histórias de um cruzeiro no mediterrâneo e os seus passageiros, seres que deambulam perdidos, lembrando por vezes zombies, e que falam nos seus diversos idiomas, não se compreendendo uns aos outros, ou melhor, acabando por se compreender porque só falam sobre dinheiro ("o dinheiro foi inventado para as pessoas não terem de se olhar nos olhos", citando o filme). nesta torre de babel marítima, um luxo de casinos, suites pirosas e missas em discotecas, godard elabora o seu primeiro excerto, usando (e por vezes abusando, em minha opinião) dos "seus" efeitos inovadores, que são já trademarks suas: dissociação do som e da imagem, intertítulos a comentar a acção, interrupção de conversações das personagens, cenas filmadas com diferentes lentes, formatos e câmaras... enfim, tudo isto, mais uma história que parece nunca se desenvolver, fazem a primeira parte do filme, ao estilo de godard, muito abstracto (mais ainda que os seus outros filmes, tirando talvez os do grupo vertov, que não conheço).
se a primeira parte é confusa, a segunda ainda o é mais. passamos agora a uma parábola sobre a família, a educação e os valores europeus (franceses, em particular). numa cena que semelha week end (a cena final), uma família que trabalha numa bomba de gasolina conversa sobre os valores ocidentais que se foram perdendo. aparentemente, os pais candidataram-se à presidência da república (e irão vencer as eleições) enquanto os seus filhos (uma leitora de balzac e um copiador de renoir's) os interrogam sobre o mundo que os rodeia. no meio disto tudo, jornalistas tentam entrevistar a família, mas são desprezados, tanto pelos filhos auto-centrados em si mesmos e na sua suposta intelectualidade, como pelos pais, que acabam por não conseguir explicar aos filhos os valores sobre os quais são questionados.
a terceira parte: uma visita célere a seis localizações europeias: palestina, barcelona, atenas, nápoles, egipto e odessa. desmitificando mitos, lutas e sangue derramado, godard sugere-nos talvez que o mundo europeu deixou de lutar, não porque não tenha razões, mas porque se conformou à realidade burguesa e capitalista que destruiu (e agora retomando o título) o SOCIALISMO. o exemplo mais fulgurante é o de odessa, em que godard nos mostra pedaços do couraçado potenkim, de eisenstein, a famosa cena da escadaria de odessa, lembram-se?, e nos mostra depois essa mesma escadaria repleta de turistas que saem do cruzeiro (aqui há uma ligação fugaz ao primeiro segmento) e são recebidos por russos em trajes ridiculamente folclóricos. assim, estas cidades da antiguidade ocidental, acabam por ser visitadas por um bando ignorante de burgueses com as suas câmaras de fotografar e roupas de saloio.
e FILM SOCIALISME é isto: abstracto, confuso, de múltiplas, por vezes paradoxais, interpretações, difícil (várias pessoas saíram a meio da sessão), comprido (para filmes do godard), e dificilmente considerado um filme. será mais um ensaio cinematográfico com uma vertente documental e um tratamento à nouvelle vague. ainda assim, adorei. o que vemos é um godard que, como num ciclo, regressa às origens, talvez um pouco esgotado, sem nada de muito novo para se dizer, mas o certo é que as coisas continuam as mesmas. este filme, de dois mil e oito, é importante sublinhar, que só estreia agora por causa de um processo longuíssimo de pós-produção, acaba por ser uma parábola muito interessante e diferente sobre a crise que corrói agora o mundo e a europa e o socialismo, diferente de filmes (também sobre a crise) como inside job (vencedor do oscar de melhor documentário este ano) ou the company men, estudos ligeiros sobre a situação internacional. sem nunca se desviar do seu estilo, godard afirma-se naquele que será, porventura o seu último filme ou um dos últimos, a morte apanha-nos a todos, como um cineasta íntegro, radical, inovador, essencial, diferente, imortal. o que eu quero agora é rever o filme, ver se de o (re)ver descubro outras visões, porque um bom filme deve ser assim, complexo, intrincado, difícil. desta ambiguidade que se opõe a filmes básicos, maniqueístas e redutores que certos realizadores (medíocres) fazem quando decidem abordar temas sociais ou políticos, resulta uma obra-prima estonteante que, não se podendo comparar ao desprezo, filme semelhante em muitos aspectos, se inscreve numa filmografia notável, que faz inveja aos judeus de hollywood (referidos por uma das personagens do filme).
o filme termina com o ecrã negro e as seguintes palavras:
NO COMMENT



post-scriptum: não percam a cameo da eternamente genial voz do punk americano patti smith

2 comentários:

  1. Não vi o filme mas acho escandaloso que em Lisboa só esteja a ser exibido numa sala do UCI - Corte Inglês e... somente a uma hora que para mim não está fácil: 19h15...

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  2. Adorei o filme... A vontade/necessidade de assisti-lo novamente é latente. Godard da uma aula de dissociação de imagem e som e de contraponto entre os elementos.
    Parabéns pelo post. Expressa bastante do que o filme é, sem interpretações estrambólicas e valorando principalmente a importância desse grande diretor que é Jean-Luc Godard.

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