quarta-feira, 17 de junho de 2009

O VIAJANTE ANTONIONI

Na altura, Lourenço Marques, onde eu vivia, já se chamava Maputo.
Éramos então jovens estudantes liceais marxistas. Alfabetizávamos, trabalhávamos no campo, planeávamos em grupo todos os nossos actos.
Nesse ambiente, não havia tempo para cultivar gostos pessoais. Ir ao cinema, por exemplo, seria considerado pouco mais do que uma frivolidade burguesa.

Mas eu ia ao cinema.
Sempre que arrancava um tempo, escapulia-me para o cine-«Dicca», ou então para o Estúdio 222, uma sala com duzentos e vinte e dois lugares praticamente desocupados.

Foi entre essas duas salas que aprendi a ver um cinema europeu que escapava aos meus hábitos: Godard (Pierrot le Fou) ou Fellini (I Clowns).

Uma vez, decidi fazer-me acompanhar por um amigo: um dos jovens estudantes liceais marxistas com quem me identificava...

E tropeçámos num filme de Antonioni. Era The Passenger (mas, pesquisando, encontro-o associado a um outro nome português, Profissão: Repórter).

Lembro-me da cor extraordinária, o azul luminoso do céu e o castanho forte de um deserto sempre presente, o lugar onde Jack Nicholson representa genialmente a personagem de um jornalista que acaba perdendo a sua identidade numa angustiante pesquisa por um homem desaparecido (espécie de Orson Welles de O Terceiro Homem...)

Comentava o Eça que Jack Nicholson sempre fora um super-cabotino; pois talvez se saia tão airosamente neste filme precisamente porque Michelangelo Antonioni, não cedendo nem um milímetro no seu conceito, na sua visão, o tivesse colocado no lugar justo, não o deixando esticar-se demasiado: tratava-se de procurar a imagem artisticamente perfeita e, em face desta, o actor, Nicholson ou qualquer actor, todos os actores tinham o estatuto de meras peças de um todo, e não podiam querer arvorar-se em centro de coisa alguma...

Sei que, à saída, o meu amigo vinha indignado com o filme. Demasiado pessoal, lamentava-se ele, demasiado em torno de uma espécie de viagem íntima existencial. E sei que, mais revolucionário do que nunca, se queixava: «Onde raio está a luta de classes tratada neste filme? Reparaste? Zero! Não há aqui luta de classes. É completamente omitida. Não vale nada, não vale nada...»

Claro, o meu amigo era pateta. Mas o meu afastamento em relação ao marxismo (não necessariamente em relação a Marx) principiou nessa altura: quando descobri que tinha de haver algum equívoco na minha pertença a uma ideologia que me impedia de fruir sem culpas um filme tão impressionante.




1 comentário:

  1. Curiosamente, quando escrevi aquele comentário sobre (alguns - poucos) realizadores europeus, e falei do pretensiosismo de Antonioni, tinha em conta este filme - The Passenger. Não podia estar mais de acordo quando o professor afirma que o Jack Nicholson está quase atrelado pelo Antonioni, que não lhe dá espaço para as suas interpetações estapafúrdias (com isto não quer dizer que ele se tenha tornado de repente bom actor, apenas que está mais contido e se torna até suportável). Achei o filme interessante, mas tinha algumas falhas (que julgo serem importantes): os actores (Maria Schneider???) e a lentidão do filme (que às vezes nos abstrai do verdadeiro propósito do argumento). Acho também que a fotografia poderia ser muito melhor, tentando tirar mais proveito das cores do deserto. Se se afinassem algumas destas questões, The Passenger poderia ser uma obra-prima - o que equivale a dizer que se um Orson Welles tivesse pegado neste tema (sobretudo com todo o enredo policial - no qual ele era um mestre a filmar) teríamos hoje um dos melhores filmes de sempre. Pena, mas mesmo assim achei interessante e dá para ver.

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