A cultura judaica tem uma matriz: o Livro Sagrado e a interpretação ortodoxa que veio sendo feita pelos rabinos ao longo dos séculos; mas, a partir desta base única, essa cultura foi-se diversificando através da História dos judeus que, como tão bem sabemos, foi uma História de perseguição e expulsão (uma vez que os perseguiram incessante e cruelmente, quando ainda se não previa que, a partir de Israel, viessem a tornar-se, também eles, os perseguidores de outros...), uma História de adaptação a meios e culturas diversos e adversos ou de incorporação, em si, das mais díspares referências culturais.
Zelig (faça o favor de clicar sobre o nome), de Woody Allen, é a personificação desta vocação ou necessidade do judeu para se transformar - até fisicamente - no que for preciso para, como um camaleão, se ajustar ao novo habitat.
Mas se, nessa longa e sofrida História, a cultura judaica se foi tornando um verdadeiro mosaico onde encontramos, em todas as áreas, o que de melhor a humanidade produziu (de Espinoza a Kafka e a Proust, de Mendelssohn a Einstein, de Marx propriamente dito aos irmãos Marx, de Freud a Will Eisner ou a Phillip Roth, e podem crer que a lista foi um brutal encurtamento entre meia dúzia das minhas predilecções...), também é verdade que conseguimos detectar um modo muito específico e singular desta cultura nos Estados Unidos da América (e nem sequer me vou deter na singularidade dentro dessa singularidade que seria o judeu nova-iorquino...).
A cultura judaica norte-americana produziu, nos comics e no cinema, um tipo de humor perfeitamente genial, feito da constante auto-ridicularização (com personagens que se expõem nas suas fraquezas, assumindo-as como motivo e motor do cómico), em que a relação do jovem adulto com a mãe é sempre uma relação por resolver, em que a hipocondria e as obsessões preenchem toda uma filosofia de vida, em que a incapacidade para se lidar com os outros se torna numa questão metafísica, em que o amor está carregado de culpa, em que a maior das defesas para as almas atormentadas e desintegradas é o treino na ironia, na auto-ironia e na mordacidade.
Nem sempre esse humor é compreendido. Conheço cada vez mais pessoas que não podem com Woody Allen. Ou, num registo mais televisivo, com Jerry Seinfield. Pessoas a quem tudo isto lhes soa muito poluído e degradado, decadente, pessimista e destrutivo (que eram, by the way, os motivos pelos quais o nazismo afirmava não tolerar a cultura judaica, esse, como diziam, «cancro da arte», esse alimento da «arte degenerada»). Nos comics, por exemplo, os argumentos e os desenhos de Robert Crumb são anti-heróicos e anti-gloriosos, apagam o luminoso para lhe preferirem uma espécie de culto do disforme e do grotesco; ou, numa visão mais política, também soa ruidoso e pouco limpo o trabalho de Art Spiegelman com o soberbo Maus (clicamos?), que é a saga de seu pai, sobrevivente dos campos de concentração nazis, numa história em que todos os judeus são desenhados como ratos e os seus opressores como gatos...
Falo de tudo isto porque venho de ver American Splendor (ora clique, clique, amigo leitor): reparem, para já, na eficaz ironia do nome em que, como no caso de O Esplendor de Portugal (clicando sempre...), de Lobo Antunes, o que se descreve pouco ou nada tem de esplendoroso. American Splendor é um filme feito a partir de uma banda desenhada que foi extremamente popular nos anos sessenta. A própria personagem principal é - já era no comic, sempre o foi... - um narrador que se revela a antítese de um herói. O que ele mostra é, bem pelo contrário, a comicidade triste da sua absoluta vulgaridade. Que histórias se podem fazer a partir de nada, do tempo gasto num emprego medíocre e entediante, ou entre amigos que não são especialmente amigos, na sequência de um segundo casamento falhado ou de dramas quotidianos tão insípidos como o de decidir qual a fila que se deve escolher para pagar no supermercado...?
Há, em tudo isto, como em quase tudo o que é típico deste humor de judeus norte-americanos, um riso que se não expande muito. E de que, bem feitas as contas, sobra sempre alguma amargura...
Imagens: 1 - Woody Allen; 2 - Bento de Espinosa; 3 - Sigmund Freud; 4 - Phillip Roth; 5 - Robert Crumb; 6 - uma prancha de American Splendor; 7 - American Splendor, the movie
CINEMA: O PODER DO CÃO
Há 2 anos
Ainda não vi o American Splendor, mas todo essa capacidade de exploração de situações quotidianas eu associo rapidamente à famosa série do Jerry Seinfeld. Era uma das coisas que me atraia à série, a forma como o lado comico partia de uma situação vulgar, sem ser forçada, mas com a qual o espectador se relaciona logo à partida. Até apetecia dizer ..."eu sei o que isso é!! Já me aconteceu tantas vezes". Não conheço os outros autores referidos, à excepção do Woody Allen, com o qual, de facto, o Seinfeld partilha essa propensão para a sátira social do quotidiano.
ResponderEliminarÉ curioso, mas desde que li este post tenho revisto nentalmente alguns autores da minha estima (de origem judaica) que no fundo, acabam de facto por reflectir na sua obra um pouco dessa obsessão que referes, esse sentimento de amargura e não integração numa sociedade que os reprime.
ResponderEliminarPara o JC - vi no outro dia o Sleeper e achei hilariante. O Woody Allen (para mim) sempre foi um realizador muito inconstante e fez alguns filmes que eu gosto muito (o Zelig, por exemplo) e outros que achei muito maus. Portanto, dificilmente o colocaria numa lista de grandes realizadores, mas vale sempre a pena ver alguns dos seus filmes. Isto lembra-me que já tinha tido a ideia de escrever um post sobre os melhores filmes de sempre (talvez para à noite eu escreva).
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