Usa-se, em português, o adjectivo «feliniano» (o qual, porém, não consta do dicionário que consultei) para designar um certo tipo de decadência que os filmes de F. Fellini tão bem conseguem reconstituir: seria um misto da degradação e do grotesco próprios de antigos aristocratas ou vedetas envelhecidos, vivendo o tempo ingrato de uma qualquer pós-revolução que os despojou de todas as glórias, mas sonhando-as ainda, evocando-as constantemente, no tom ridículo desse desajustamento, e tendo por fundo ruas e pensões pobres, famílias numerosas, homens pequeno-almoçando com chapéu e em camisola interior, velhas pequeníssimas, mulheres gordíssimas, manchas de suor por todo o lado, uma alegria de espectáculo de cabaré, contaminada pela tristeza da penúria e da fome. É algo disto ou um pouco de tudo isto que se quer sublinhar quando se afirma, perante dada situação, que ela é «tão feliniana». (E percebo por que razão os dicionários se escapam a uma tal definição: como diacho encontrariam uma síntese para o que acabei de descrever?)
Vem esta longa consideração a propósito de Roma, o filme que, este sábado, após ter gozado os dois Mel Brooks que o Eça me tinha emprestado, decidi rever, à noite.
Roma - onde, por acaso, nunca fui - é fantástica. (Dizem-me!). E Roma, de Fellini, fantástico é, também: a mais justa homenagem a uma cidade, à sua História, ao seu povo.
O filme, em forma de documentário (o que é, também, uma abordagem tão feliniana), vai contrapondo duas épocas e dois Fellini: por um lado, temos Fellini, o jovem recém-chegado à cidade, em 39, descobrindo-a como um dos principais palcos de uma guerra para onde Mussolini conduzira a Itália, entre sinais de penúria e medo que, no entanto, não apagavam o temperamento exaltado e festivo do povo; e, por outro lado, temos Fellini, o realizador já famoso que, em 1972, está rodando precisamente este filme, nesta mesma cidade, comparando-a, sempre, com a Roma da sua memória, perguntando-se pelas diferenças e pelos progressos entretanto havidos, mas, agora, em face de outros sinais e de outras pessoas: os jovens estudantes revolucionários que o interpelam e contestam («Mas que Roma vai filmar?! Aposto que é a Roma maternal e burguesa...»), os hippies, os velhos reaccionários («O que quer mostrar ao mundo? Esta Roma de drogados e prostitutas...?»)...
É o tom surrealista, de tão realista, o que marca estas cenas; não é fácil encontrar um fio condutor, porque, entre a reprodução dos momentos a que a sua memória o reconduz e a descrição da realidade de hoje (isto é, 72), o filme fragmenta-se em pequenos episódios inesquecíveis. Em vez de actores, são as pessoas comuns (tão incomuns, de facto) que Fellini procura captar, nos seus defeitos e virtudes, nas suas superstições obtusas ou nos seus tiques latinos. É um trabalho de pintor flamengo. Os rostos estranhos, os narizes, os gritos. A pensão que ele reconstitui é, simplesmente, deliciosa, com um garoto de óculos enormes, fugindo de bicicleta pelos corredores, ou o casal mal avindo que se reconcilia com mútuos insultos carinhosos durante um jantar, de antologia, em plena rua, com eléctricos a passar ao lado das mesas.
A recordação do passado em tempo de guerra é assombrosa, desde as referidas situações da pensão dirigida pela mamma gordíssima, até ao lupanar, passando pelo espectáculo de vaudeville - pobre, ridículo, de coristas e cançonetistas terríveis, de comediantes sem graça, perante um público cruel, em que os meninos urinam para o chão e uma espécie de estilosos de trazer por casa implicam cruelmente com os artistas. Ou, surgindo como ponte entre o passado e o presente, o desfile de moda clerical (de que vos deixo um excerto) é simplesmente impagável...
E, de tudo isto, sobressai Roma, la bella: enorme, carregada de História e de luz, de noites extraordinárias, sangue na guelra, gritos e paixões, mediados pela sirene de aviso dos bombardeamentos - ou onde encontramos, numa das partes de 1972, uma imperdível auto-estrada onde tudo é ainda possível...
A recordação do passado em tempo de guerra é assombrosa, desde as referidas situações da pensão dirigida pela mamma gordíssima, até ao lupanar, passando pelo espectáculo de vaudeville - pobre, ridículo, de coristas e cançonetistas terríveis, de comediantes sem graça, perante um público cruel, em que os meninos urinam para o chão e uma espécie de estilosos de trazer por casa implicam cruelmente com os artistas. Ou, surgindo como ponte entre o passado e o presente, o desfile de moda clerical (de que vos deixo um excerto) é simplesmente impagável...
E, de tudo isto, sobressai Roma, la bella: enorme, carregada de História e de luz, de noites extraordinárias, sangue na guelra, gritos e paixões, mediados pela sirene de aviso dos bombardeamentos - ou onde encontramos, numa das partes de 1972, uma imperdível auto-estrada onde tudo é ainda possível...
Conheço pouco a obra de Fellini. Vi a Dolce Vita, que sob alguns pontos de vista achei interessante, embora não tenha gostado muito, a Estrada, que também não gostei, e vi um pouco da Julieta dos Espíritos, que me pareceu engraçado. Parece-me (e repito, parece-me) que alguns realizadores europeus da segunda metade do século XX foram demasiado considerados. Durante os anos cinquenta até aos setenta, surgiram uma série de realizadores em frança e na itália que representavam, digamos assim, o oposto do cinema americano. Em frança surgiu a Nouvelle Vague. Em Itália, houve primeiro um movimento neo-realista (Visconti, ainda nos anos quarenta, e Pasolini) e nessa tradição apareceu o Fellini. Outro realizador, Antonioni, que é amplamente considerado mas que não fez nada de especial. Parece-me mais que era um realizador com potencial, mas que o desperdiçou com o seu carácter pretensioso. Outros realizadores que se incluem nesse perfil serão o Fellini e o Truffaut, provavelmente. Em contrapartida, o Godard, por exemplo, que foi de longe o mais revolucionário de todos, tinha um cinema mais "humilde", mas ao mesmo tempo mais radical e explosivo. Mas os críticos de cinema, talvez porventura espantados com todo aquele cinema inovador, acabaram por colocar tudo na mesma prateleira, não conseguindo distinguir o "bom" do "mau". Nos EUA a valorização de maus realizadores deve-se ao sucesso económico, como o Spielberg, que me parece ser o melhor exemplo.
ResponderEliminarCom isto tudo não quer dizer que eu NÃO GOSTE do Fellini, apenas que não acho que ele seja um grande realizador e que nunca o colocaria numa lista de grandes realizadores. No entanto, tenas alguns trabalhos interessantes que, tal como 0 2001 Odisseia no Espaço, merecem, no mínimo, ser vistos.
ResponderEliminarHá dois ou três Fellini que considero imperdíveis. Um deles, é A Orquestra. (Tive tantas discussões com pessoas que me diziam que, com esse filme, Fellini virara fascista...); outro é um que julgo que é muito pouco referido - e considerado menor na sua cinematografia - mas que me parece extraordinário na captação da tristeza do cómico, e é Os Palhaços. Roma, acho fantástico. (Tenho para a partilha!)
ResponderEliminarE, na minha opinião, Antonioni tem melhor e pior. Qualquer dia falarei do que, nele, me parece o melhor. (Um filme, pelo menos!)